JÉSSICA CAVALCANTI BARROS RIBEIRO[1]
(coautora)
RESUMO: O objetivo do artigo é analisar o instituto da Tentativa ou conatus, principalmente quais são os critérios utilizados pelos doutrinadores do direito para determinar a passagem da fase de preparação para a fase de execução do crime, diferenciando-as, dentro do iter criminis, para identificar em que momento o crime poderá efetivamente sofrer punição. Trata-se de uma pesquisa descritiva, cuja metodologia empregada consiste em pesquisa bibliográfica, principalmente na área do Direito Penal, utilizando-se também de análise jurisprudencial. Ao final, conclui-se que as teorias de cunho objetivas/realística/dualista têm em comum a ideia de que o dolo é igual em todas as etapas da prática delitiva, por isso a identificação dos atos de execução depende de manifestações externas inequívocas, no sentido de realizar a pretensão criminosa. Dentre as teorias objetivistas, somente à luz do caso concreto é possível determiná-las, definindo assim, qual seria a mais adequada na situação, exigindo fundamentação adequada do aplicador do direito. Outrossim, o Código Penal adotou em situações excepcionais a Teoria Subjetiva, como nos crimes de atentado ou empreendimento.
Palavras-Chave: Tentativa. Iter Criminis. Execução.
ABSTRACT: The objective of the article is to analyze the instituto da Tentativa or conatus, mainly what are the criteria used by legal indoctrinators to determine the transition from the preparation phase to the crime execution phase, differentiating them, within the iter criminis, to identify when the crime may actually be punished. It is a descriptive research, whose methodology used consists of bibliographic research, mainly in the area of Criminal Law, also using jurisprudential analysis. In the end, it is concluded that objective / realistic / dualist theories have in common the idea that fraud is the same in all stages of criminal practice, so the identification of acts of execution depends on unequivocal external manifestations, sense of carrying out the criminal claim. Among the objectivist theories, it is only in the light of the concrete case that it is possible to determine them, thus defining which would be the most appropriate in the situation, requiring adequate justification from the enforcer of the law. Furthermore, the Penal Code adopted in exceptional situations the Subjective Theory, as in the crimes of attack or enterprise.
Keywords: Attempt. Iter Criminis. Execution.
INTRODUÇÃO
O presente Artigo Científico objetiva analisar o instituto jurídico da Tentativa ou Conatus no Direito Penal brasileiro, visando identificar quando efetivamente se inicia a fase de execução de um crime e em que momento do iter criminis o delito pode realmente sofrer punição. O trabalho se baseia em pesquisa bibliográfica, através da revisão de livros na área do Direito Penal.
Com efeito, como propõe a maioria dos doutrinadores, a tentativa de um crime se inicia na fase de execução. Entretanto, há critérios determinantes de passagem dentro do iter criminis (da fase de preparação para a fase de execução do crime), pois enquanto os atos preparatórios são (em regra) impuníveis, os atos executórios são (em regra) puníveis. Opera-se uma verdadeira divisão entre impunidade e possibilidade de se aplicar a punição (punibilidade).
Desta forma, como hipótese, tem-se que, para identificar os atos de execução, são necessárias manifestações externas inequívocas no sentido da pretensão criminosa. Percebe-se assim a adoção pelo Código Penal pela Teoria Objetiva como regra geral. Analisaremos o iter criminis (caminho do crime), bem como as outras teorias existentes na doutrina sobre a separação de atos preparatórios e atos de execução, a saber: as Teorias Subjetiva e Objetiva (objetiva-formal, objetiva-material, objetiva-individual).
Inicialmente, no primeiro tópico, serão analisados o conceito e a natureza jurídica da tentativa, de suma importância para a Teoria do Delito. Apesar de o Código Penal apresentar o conceito de tentativa, é tarefa da doutrina determinar quando ela se inicia.
Desenvolvendo o tema, no segundo tópico, será analisado o iter criminis (caminho do crime), e serão destacadas as fases mais importantes, com o intuito de esclarecer as diferenças entre atos preparatórios e executórios.
Por fim, no terceiro tópico, serão analisadas as correntes doutrinárias existentes sobre a separação de atos preparatórios e atos de execução, de modo a determinar quando se inicia a execução de um delito.
1. CRIME TENTADO: O INSTITUTO DA TENTATIVA – CONATUS - FORMA CONATA - CRIME IMPERFEITO - CRIME MANCO
O instituto da Tentativa é estudado na manifestação do crime porque determinadas condutas são consideradas nocivas para a organização social, de modo que não é razoável aguardar a efetiva aflição dos bens jurídicos para puni-las. Brandão (2008), ao abordar a evolução histórica e o surgimento do instituto da Tentativa, aduz que somente no período mais avançado do direito medieval, no período dos pós-glosadores, no século XVI, surgiu a construção de uma solução intermediária entre a punibilidade e a impunidade do crime. Foi Farinacius, com a obra Tractatus Criminalis, quem criou a figura do conatus (tentativa), distinguindo entre conatus remotus (atos preparatórios) e conatus proximus (atos de execução), estabelecendo as bases do estudo da Tentativa.
A Tentativa possui uma evolução que vai do Direito Romano e Germânico até 1810, com os franceses estabelecendo que só há Tentativa quando o crime não chega à consumação por circunstâncias exteriores ao agente. Segundo Brandão (2008), foi somente com o Código Penal Francês de 1810 que houve a separação das etapas do iter criminis (itinerário a percorrer desde a ideação do crime até a consumação) em:
i) cognitio ou cognição, que é o planejamento do evento pelo sujeito, completamente impune, pois não se castigam pretensões;
ii) atos preparatórios (conatus remotus), que são atos externos, a exemplo de a compra de uma arma com o intuito de praticar homicídio (os atos preparatórios não são puníveis, a menos que por si só constituam crimes);
iii) atos de execução (conatus proximus), que são as atitudes diretamente ligadas à prática do crime, configurando atos puníveis, como a tentativa;
iv) consumação, que é o alcance do resultado pretendido pelo autor, punido como crime consumado;
v) exaurimento, que configura objetivo extra alcançado pelo autor.
Com efeito, Busato (2015) conceitua o crime tentado como o crime cuja execução foi iniciada e que não chegou ao resultado, contrariando a planificação elaborada pelo agente. Por sua vez, Nucci (2020) define tentativa como “a realização incompleta da conduta típica, que não é punida como crime autônomo”; e Masson (2019) aduz que o ato de tentativa é necessariamente um ato de execução, pois exige-se que o sujeito tenha praticado atos executórios, daí não sobrevindo a consumação por forças estranhas ao seu propósito, o que acarreta em tipicidade não finalizada, sem conclusão. Finalmente, Bitencourt (2012, p. 521), conceitua a tentativa como:
a realização incompleta do tipo penal, do modelo descrito na lei. Na tentativa há prática de ato de execução, mas o sujeito não chega à consumação por circunstâncias independentes de sua vontade.
Sobre o instituto da tentativa, o Código Penal Brasileiro estabelece em seu art. 14, inciso II:
Art. 14 - Diz-se o crime:
I - consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal;
II - tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente
Assim, a tentativa é a execução de todo o conjunto de atos necessários à consubstanciação do crime, que, não logrando êxito, não produz o resultado desejado, por fatores exteriores ao agente (ao contrário, quando os atos se perfazem no resultado desejado, diz-se que houve um crime consumado). Todavia, esse conjunto de atos, que não levaram à consumação do crime, reveste-se de grande importância penal.
Sempre que presentes todos os elementos do tipo, o fato está consumado. Se ausente o resultado, o crime é tentado. Dessa maneira, não há qualquer problema de delimitação entre consumação e atos de execução, que inclusive é o cerne da parte especial do Código Penal, pois cada tipo terá seus elementos próprios, cuja reunião forma o tipo consumado (BUSATO, 2015).
Dessa forma, a tentativa é considerada uma “fórmula de extensão”, porque o Código Penal não faz previsão, para cada delito, da figura da tentativa, embora a maioria dos delitos permitam a forma tentada. A respeito, vejamos o magistério de Nucci (2020, p. 431):
Preferiu-se usar uma fórmula de extensão, ou seja, para caracterizar a tentativa de homicídio, não se encontra previsão expressa no art. 121, da Parte Especial. Nesse caso, aplica-se a figura do crime consumado em associação com o disposto no art. 14, II, da Parte Geral. Portanto, o crime tentado de homicídio é a união do “matar alguém” com o “início de execução, que não se consumou por circunstâncias alheias à vontade do agente”. Pode-se ler: quem, pretendendo eliminar a vida de alguém e dando início à execução, não conseguiu atingir o resultado morte, praticou uma tentativa de homicídio.
Ressalte-se que, quanto à natureza jurídica da Tentativa, Nucci (2020) ensina que se trata de uma “ampliação da tipicidade proibida, em razão de uma fórmula geral ampliatória dos tipos dolosos, para abranger a parte da conduta imediatamente anterior à consumação”. Ademais, para Busato (2015), o tipo tentado, como tal, não existe, porque não há tentativa em si, mas sempre tentativa de algo. Isso obriga o intérprete a conjugar o tipo da parte especial com um elemento da parte geral, caracterizando a chamada tipicidade indireta. Trata-se de uma tipicidade derivada do tipo consumado, que constitui uma ampliação da figura típica.
A adequação típica de um crime tentado é de subordinação mediata, ampliada, ou por extensão, já que a conduta do agente não se enquadra prontamente na lei penal, sendo necessário, para complementar a tipicidade, a interposição do dispositivo contido no art. 14, II, CP. Opera-se uma ampliação temporal, porque o alcance do tipo penal abarca atos executórios prévios à consumação (MASSON, 2019).
Por fim, leciona Busato (2015) que a Tentativa é um delito incompleto, pois lhe falta o resultado. Assim, segundo o autor, o tipo tentado possui os seguintes elementos: i) decisão de realizar o crime (elemento subjetivo da ação); ii) realização de atos executórios; iii) ausência de resultado por motivos alheios à vontade do autor. A esse raciocínio, acrescentam-se as palavras de Masson (2019) que discrimina os elementos da tentativa em i) início da execução do crime; ii) ausência de consumação por circunstâncias alheias à vontade do agente; iii) dolo de consumação.
2. ITER CRIMINIS
Segundo Guimarães (1995), iter criminis consiste no percurso seguido pelo criminoso. Divide-se em duas fases: a interna, que é a cogitação, a preparação do delito; e a externa¸ que inclui atos preparatórios, executórios e a consumação do crime. A fase interna ocorre na mente do agente, percorrendo as etapas da:
i) cogitação - momento de ideação do delito, ou seja, quando o agente tem a ideia de praticar o crime;
ii) deliberação - trata-se do momento em que o agente pondera os prós e os contras da atividade criminosa idealizada;
iii) resolução - cuida do instante em que o agente decide praticar o delito.
Tendo em vista que a fase interna não é exteriorizada, logicamente não é punida, pois ninguém pode ser punido por seus pensamentos (NUCCI, 2020). Quanto à fase externa, esta ocorre quando o agente exterioriza, por meio de atos, seu objetivo criminoso, dividindo-se em:
i) manifestação - momento em que o agente proclama a sua resolução (embora essa fase não possa ser punida como tentativa do crime almejado, é possível tornar-se figura típica autônoma);
ii) preparação - é a fase de exteriorização da ideia do crime, através de atos. Nessa fase, segundo Nucci (2020), há a materialização da perseguição ao alvo idealizado, configurando uma verdadeira ponte entre a fase interna e a execução (como o agente ainda não ingressou nos atos executórios, não é punida no direito brasileiro);
iii) execução - é a fase de realização da conduta designada pelo núcleo da figura típica. É constituída, como regra, de atos idôneos para chegar ao resultado, e de atos imediatamente anteriores a estes, desde que se tenha certeza do plano concreto do autor (exemplo: comprar um revólver para matar a vítima é apenas a preparação do crime de homicídio, embora dar tiros na direção do ofendido signifique atos idôneos para chegar ao núcleo da figura típica “matar”);
iv) consumação - é o momento de conclusão do delito, reunindo todos os elementos do tipo penal (NUCCI, 2020).
Por fim, o exaurimento do crime significa a produção de resultado lesivo ao bem jurídico após o delito já estar consumado, ou seja, é o esgotamento da atividade criminosa, implicando em outros prejuízos além dos atingidos pela consumação. É o que ocorre no contexto dos crimes formais, quando atingem o resultado previsto no tipo (mas não obrigatório para a consumação). Exemplo disso: o recebimento do resgate (exaurimento) na extorsão mediante sequestro, que se consuma após a realização da privação da liberdade da vítima (NUCCI, 2020). Passa-se a analisar a seguir algumas fases do iter criminis.
2.1. COGITATIO - COGNITIO - COGITAÇÃO - COGNIÇÃO
A premeditação/elaboração intelectual é a primeira fase do iter criminis. É a fase interna, que não se revela em atos externos. Não há ação sem cogitação, sobretudo porque a ação é a unidade dialética entre o querer e o fazer. Vejamos a jurisprudência do STJ sobre a cogitação:
PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 155 E 14, INCISO II, DO CP. TENTATIVA
DE FURTO. NÃO OCORRÊNCIA. EXECUÇÃO NÃO INICIADA. COGITAÇÃO E PREPARAÇÃO. VERIFICAÇÃO. REEXAME DO CONJUNTO PROBATÓRIO. SÚMULA 7/STJ.
1 O Tribunal a quo concluiu, após percuciente exame do conjunto probatório, que a conduta atribuída ao agravado na denúncia se limitou às fases de cogitação e preparação do crime, não havendo se falar em atos executórios no presente caso.
2. Para rever tal posicionamento, concluindo não ter o acusado iniciado os atos executórios do crime de furto, como requer a parte recorrente, seria necessário o reexame do conjunto fático-probatório, providência vedada em sede de recurso especial, em razão da incidência do óbice da Súmula 7 desta Corte: "A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial". 3. Agravo regimental não provido.
(STJ - Acórdão Agrg no Aresp 205968 / Go, Relator(a): Min. Reynaldo Soares da Fonseca, data de julgamento: 07/06/2016, data de publicação: 13/06/2016, 5ª Turma)
É importante ressaltar, conforme demonstrado no julgado acima colacionado, que no Estado de Direito, não se pune um indivíduo pela simples cogitação. É verdade que ninguém pode ser punido pelos seus pensamentos (MASSON, 2019).
2.2. CONATUS REMOTUS - ATOS PREPARATÓRIOS
A segunda fase do caminho do crime é o ato preparatório. Esse ato é diferenciado do conatus proximus pela não realização do verbo descrito no tipo. Em regra, os atos preparatórios não são puníveis, pois representam apenas uma possibilidade futura de lesão a um bem jurídico. Se não houve tentativa de lesão a um bem jurídico, não há punição.
Os atos preparatórios são, por exemplo, a compra/preparação dos instrumentos, a escolha do local, a escolha da hora. Eles serão puníveis apenas se estiverem descritos em algum tipo penal, de forma autônoma (BRANDÃO, 2008). Conforme ensina Guimarães (1995, p. 376):
Não se pune a cogitação, nem a intenção manifesta, a menos que constitua crime (ameaça); os atos preparatórios também não são puníveis, só os de execução que se enquadrem nos tipos previstos nos dispositivos penais (C.P., arts. 31, 147, 253, 291).
Ato preparatório é, em verdade, a forma de atuar que cria as condições prévias adequadas para a realização do delito planejado. Precisa ir além do simples projeto interno, sem que se deva, contudo, iniciar a imediata realização tipicamente relevante da vontade delitiva. Os atos preparatórios geralmente não são puníveis, nem na forma tentada, apenas quando constituem infração penal autônoma, o que se chama de “crime-obstáculo” (MASSON, 2019).
2.3. CONATUS PROXIMUS - ATOS DE EXECUÇÃO
O conatus proximus é a quase realização do crime, é o ato de execução, é quando o verbo descrito no tipo começa a ser realizado. Considera-se difícil a percepção da linha divisória entre o conatus remotus e o conatus proximus. Segundo a jurisprudência do STJ:
É bem verdade que embora tenha traçado a linha divisória entre a preparação e a execução (começo de execução) nosso legislador não definiu a área do significado central do conceito, preferindo que a matéria ficasse em aberto, em nível dogmático. Assim, na procura do elemento diferenciador busca-se a solução na resolução do agente, seu plano e no deslocamento do momento externo para o momento interno; ou seja, a unificação do subjetivo com o objetivo. É o plano iniciado, colocando em risco o bem juridicamente tutelado com a execução inacabada por circunstâncias alheias à vontade do agente.
Dessa maneira, o STJ aduz que é tarefa da doutrina traçar os limites entre atos preparatórios e executórios. Segundo Cunha (2016) o ato executório, para assim ser considerado, deve ser idôneo, ou seja, concretamente capaz de conduzir o sujeito ativo ao alcance do resultado almejado. Além disso, é necessário que seja inequívoco, evidentemente direcionado ao cometimento do delito.
Pensando nisso, Frank criou uma fórmula que pudesse dividir mais claramente esses dois momentos do crime, conforme sugere Brandão (2008, p. 260):
Para solucionar tais dificuldades, Frank elaborou uma fórmula da tentativa que reconhece o início da execução em todos os atos que, em virtude de sua necessária correspondência à ação típica, aparecem como partes integrantes desta, de modo que, se não houvesse a interrupção da ação, a realização do tipo seria concretizada.
A partir dessa concepção (Fórmula de Frank), surgiu a ideia de que o ato precedente à realização do tipo, que lhe fosse logicamente necessário, deveria ser considerado ato de execução (BUSATO, 2015).
2.4. CONSUMATIO - CONSUMAÇÃO DO CRIME
A consumação do crime se dá com a reunião de todos os seus elementos. Nos crimes materiais, exige-se um resultado naturalístico. Já nos crimes formais, não se exige o resultado naturalístico, embora esse possa ocorrer, porque a infração se consuma apenas com a realização do verbo que está no tipo. Quanto aos crimes de mera conduta, o resultado naturalístico é impossível de ocorrer, se consumando o crime com a prática do verbo do tipo.
Só há viabilidade da tentativa se o iter criminis puder ser fracionado. Normalmente, os crimes formais e de mera conduta são unissubsistentes. Crimes unissubsistentes se constituem de um ato, não admitindo fracionamento, e por isso, a execução se confunde com a consumação. Dessa forma, é impossível se falar em tentativa. Quanto aos crimes materiais, via de regra, são plurissubsistentes, admitindo assim a forma tentada.
Existem crimes cuja tentativa é punida com pena autônoma ou igual à do crime consumado (vide o exemplo do art. 352 do Código Penal: “Evadir-se ou tentar evadir-se...”). Logo, fugir ou tentar fugir empregando violência contra a pessoa é crime consumado. Impossível, pois, falar-se em tentativa de “tentar fugir”, pois estaríamos cuidando de mera preparação ou cogitação. São os chamados crimes de atentado ou de empreendimento (NUCCI, 2020).
Quanto ao elemento subjetivo do tipo, o dolo na tentativa é o mesmo dolo da consumação, pois o crime é perfeito na esfera subjetiva do agente, embora imperfeito no campo objetivo, relacionado ao resultado que deveria ser produzido com a conduta delituosa (MASSON, 2019). Segundo Busato (2015), a tentativa é um delito incongruente por excesso subjetivo, eis que o agente quer mais do que logrou realizar, de modo que a dimensão subjetiva do delito aparece maior que a objetiva. Para Nucci (2020), é perfeitamente possível a coexistência da tentativa com o dolo eventual, embora seja de difícil comprovação no caso concreto.
Arremata Busato (2015) que a tentativa deve ser obrigatoriamente dolosa, pois o sujeito deve pretender algo que não logra, afinal, não é possível não ter a pretensão e tê-la de forma concomitante.
O problema fundamental da tentativa é justamente a separação entre atos preparatórios (impunes) e atos de execução (puníveis), o que dá margem à criação de várias teorias que procuraram, cada uma a seu modo, firmar essa fronteira (BUSATO, 2015).
Se o limite mínimo de punibilidade do delito, expresso pela tentativa, começa com os atos de execução, enquanto que os atos preparatórios, salvo a hipótese excepcional de que eles próprios configurem um crime específico, restam impunes, a fronteira entre ato de execução e ato preparatório é a verdadeira fronteira entre punibilidade e impunidade em relação ao iter criminis (BUSATO, 2015). Nucci (2020, p. 437) afirma que não se trata de tema fácil e uniforme, havendo basicamente, duas teorias acerca do assunto:
a) subjetiva: não existe tal passagem, pois o importante é a vontade criminosa, que está presente, de maneira nítida, tanto na preparação quanto na execução do crime. Ambas trazem punição ao agente;
b) objetiva: o início da execução é invariavelmente constituído de atos que principiem a concretização do tipo penal. Trata-se da teoria adotada pelo Código Penal e sustentada pela doutrina pátria. Há, pois, maior segurança para o agente, que não será punido simplesmente pelo seu “querer”, salvo quando exteriorizado por atos que sejam próprios e adequados a provocar o evento típico, causando um perigo real ao bem jurídico protegido pela norma penal.
Para Busato (2015), a chamada teoria subjetiva/voluntarística/monista pura estabelece que a fonte de identificação do ato de execução reside na vontade de cometer o delito e na representação do autor, a respeito dos efeitos de sua realização. Seria a própria manifestação de vontade do autor quem definiria o início da execução. O problema reside no fato de que a “vontade” do autor está em todas as etapas do delito desde a cogitatio, e não se altera até o exaurimento (o dolo na tentativa não se altera). Com base apenas na “vontade”, torna-se impossível estabelecer se o ato é de execução ou é preparatório, até porque não se castiga a vontade má em si mesma, mas sim, a vontade má em realização.
Se a ideia é identificar o ato de execução como a externalização da vontade ou da representação, essa manifestação externa não é um dado subjetivo, mas objetivo. Portanto, não é adequado chamar de teoria subjetiva, pois que haveria muita dificuldade em estabelecer requisitos objetivos em uma manifestação de vontade: a manifestação de vontade do agente, em si, não pode ser critério de separação de absolutamente nada. Em virtude disso, essa teoria encontra-se superada hodiernamente (BUSATO, 2015).
Com efeito, a doutrina pátria sustenta que o Código Penal preferiu adotar a teoria objetiva. As teorias objetivas/realística/dualista têm em comum a ideia de que o dolo é igual em todas as etapas da prática delitiva, por isso, a identificação dos atos de execução depende de manifestações externas inequívocas no sentido da pretensão criminosa. Essas teorias diferenciam-se internamente, com vistas à identificação do que seria esse indicador externo objetivo (BUSATO, 2015). De acordo com Nucci (2020, p. 437), dentro da teoria objetiva, a doutrina se divide em diversas correntes, havendo o predomínio das seguintes:
a) teoria objetivo-formal, preconizando que ato executório é aquele que “constitui uma parte real do fato incriminado pela lei” (Von Liszt, Birkmeyer), ou, segundo Beling, atos executórios são os que fazem parte do núcleo do tipo, constituído pelo verbo (cf. Hungria, Comentários ao Código Penal, v. I, t. II, p. 83-84). Ainda no contexto da teoria objetivo-formal, pode-se destacar a teoria da hostilidade ao bem jurídico, sustentando ser ato executório aquele que ataca o bem jurídico, retirando-o do “estado de paz”. É a teoria adotada por Mayer e seguida por Hungria (Comentários ao Código Penal, v. I, t. II, p. 84). É a teoria que sustenta serem atos executórios apenas os idôneos e unívocos para atingir o resultado típico. Em seu apoio, além de Hungria, estão Frederico Marques (Tratado de direito penal, v. II, p. 373-374) e Paulo José da Costa (Comentários ao Código Penal, 7. ed., p. 50);
b) teoria objetivo-material, afirmando que atos executórios não são apenas os que realizam o núcleo do tipo ou atacam o bem jurídico, mas também aqueles imediatamente anteriores ao início da ação típica, valendo-se o juiz do critério do terceiro observador, para ter certeza da punição (cf. exposição de Zaffaroni e Pierangeli, Da tentativa, p. 56). É a teoria adotada pelo Código Penal português: art. 22.2 “São atos de execução: a) os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime; b) os que forem idôneos a produzir o resultado típico; ou c) os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam atos das espécies indicadas nas alíneas anteriores” ;
c) teoria objetivo-individual, defendendo que os atos executórios não
são apenas os que dão início à ação típica, atacando o bem jurídico, mas também os praticados imediatamente antes, desde que se tenha prova do plano concreto do autor (Zaffaroni e Pierangeli, ob. cit., p. 56). Logo, a diferença entre esta última teoria e a objetivo-material é que não se necessita do terceiro observador; ao contrário, deve-se buscar prova do plano concreto do agente, sem avaliação exterior.
Em primeiro lugar, para a teoria objetivo-formal, são atos de execução aqueles atos que representam o início da realização dos elementos do tipo. Ou seja, a identificação se dá através da presença concreta de algum ato que consista na realização do verbo que expressa o núcleo do tipo legal de crime. É a teoria mais aceita pela doutrina (BUSATO, 2015). No entanto, há problemas nessa teoria, como o desprezo do aspecto subjetivo, que não permite identificar quando um disparo contra alguém é lesão corporal ou tentativa de homicídio (BUSATO, 2015).
Em segundo lugar, para a teoria objetivo-material, não basta a realização de algum dos elementos do tipo para se falar em atos de execução, é necessária a presença de efetivo perigo para o bem jurídico protegido pelo tipo. Assim, aquele que aponta a arma coloca em perigo a vítima antes mesmo do disparo, portanto já haveria tentativa. Essa teoria não foi inovadora, mas apenas um complemento da teoria objetivo-formal (BUSATO, 2015).
Em terceiro lugar, para a teoria da impressão, objetivo-individual ou objetivo-subjetiva, somente se pode falar em início de execução diante da presença de elementos de que o autor iniciou a realização do seu plano. Ela pretende unir as duas teorias anteriores: objetiva e subjetiva. Tal teoria, por um lado, aponta para aspectos objetivos ao exigir a imediatidade da conduta em relação à realização típica, e, por outro lado, leva em conta aspectos subjetivos ao levar em consideração a vontade do autor (BUSATO, 2015). Como não existe tentativa em si, mas sempre tentativa de algo, o tipo penal a ser praticado deve ser percebido através da ação realizada para que se identifique corretamente a existência de uma tentativa.
Assim, parece claro, do ponto de vista objetivo, que o que identifica a teoria objetivo-individual é o significado ou sentido da ação, transmitindo a ideia de um determinado tipo de ação, que ocorre em um contexto, em dadas circunstâncias. As pretensões do sujeito se expressam em ações e interferem nela. As pretensões do agente somente ganham relevância jurídico-penal quando expressas através de realização (BUSATO, 2015). Para Masson (2019), a teoria da impressão representa um limite à teoria subjetiva, evitando o alcance desordenado dos atos preparatórios.
Todavia, Nucci (2020, p. 439) alerta que somente à luz do caso concreto é possível trabalhar as teorias, definindo assim, qual seria a mais adequada:
De todo o exposto, no entanto, deve-se ressaltar que qualquer teoria, à luz do caso concreto, pode ganhar contornos diferenciados, pois tudo depende das provas produzidas nos autos do inquérito (antes do oferecimento da denúncia ou queixa, voltando-se à formação da convicção do órgão acusatório) ou do processo (antes da sentença, tendo por fim a formação da convicção do julgador). Por isso, encontrar, precisamente, a passagem da preparação para a execução não é tarefa fácil, somente sendo passível de solução à vista da situação real.
A teoria adotada como regra pelo Código Penal, segundo Masson (2019), foi a teoria objetiva (também chamada de realística ou dualista), pois que determina que a pena da tentativa deve ser correspondente à pena do crime consumado, diminuída de 1 (um) a 2/3 (dois terços). Como o desvalor do resultado é menor, quando comparado ao do crime consumado, a forma conata deverá suportar punição, mas branda. Entretanto, de forma excepcional, é aceita a teoria subjetiva, ou monista, consagrada pela expressão “salvo disposição em contrário” existente no art. 14, parágrafo único do Código:
O juiz deve levar em consideração, no momento da dosimetria da pena, apenas o iter criminis percorrido, ou seja, tanto maior será a diminuição, que varia de um a dois terços (art. 14, parágrafo único, CP), quanto mais distante ficar o agente da consumação. Bem como, tanto menor será a diminuição, quanto mais se aproximar o agente da consumação do delito (NUCCI, 2020).
Na ocasião da dosimetria da pena de um crime tentado, não se leva em conta qualquer circunstância – objetiva ou subjetiva –, tais como crueldade no cometimento do delito ou péssimos antecedentes do agente. Estamos diante de causa de diminuição obrigatória, tendo em vista que se leva em conta o perigo que o bem jurídico sofreu, sempre diferente na tentativa, se confrontado com o crime consumado. Assim, o crime consumado é punido com mais rigor do que a tentativa, não obstante em ambos os casos a intenção delituosa ser a mesma igualmente perversa (NUCCI, 2020).
Por fim, a leitura do artigo 14, parágrafo único, do Código Penal revela que embora a regra seja a adoção da teoria objetiva, existem situações no ordenamento em que o legislador pune com a mesma pena a forma consumada e tentada, adotando a teoria subjetiva. São os chamados crimes de atentado ou empreendimento, como o previsto no artigo 352 do Código Penal (CUNHA, 2016).
Conforme o exposto, no crime tentado ocorre a execução do conjunto de atos necessários à efetiva realização do crime, mas, não logrando êxito, não produz o resultado desejado por fatores exteriores ao agente. Sempre que presentes todos os elementos do tipo, o fato está consumado. Do contrário, ausente o resultado, o crime é tentado.
Todavia, o problema fundamental da tentativa é justamente a separação, no iter criminis, entre atos preparatórios (impuníveis), e atos de execução (puníveis), o que deu margem a criação de várias teorias que procuraram, cada uma a seu modo, firmar essa fronteira.
De acordo com a chamada Teoria Subjetiva/Monista Pura, a fonte de identificação do ato de execução seria a manifestação de vontade do autor. O problema reside no fato de que a “vontade” do autor está em todas as etapas do delito, desde a cogitatio, e não se altera até o exaurimento (o dolo na tentativa não se altera). Conclui-se que apenas com base na “vontade”, torna-se impossível estabelecer se o ato é de execução ou é preparatório.
Com efeito, as Teorias Objetivas/Realística/Dualista têm em comum a ideia de que o dolo é igual em todas as etapas da prática delitiva, por isso a identificação dos atos de execução depende de manifestações externas inequívocas no sentido da pretensão criminosa. A doutrina afirma ser esta a corrente adotada no Brasil para determinar o início da execução de um crime. Dentre as Teorias Objetivistas, somente à luz do caso concreto é possível determiná-las, definindo assim, qual seria a mais adequada na situação. Isso exige fundamentação adequada do aplicador do direito.
Outrossim, a tentativa é causa de diminuição de pena obrigatória, tendo em vista que se leva em conta o perigo que o bem jurídico sofreu, sempre menor na tentativa se confrontado com o crime consumado. Assim, o crime consumado é punido com mais rigor do que a tentativa, não obstante em ambos os casos a intenção delituosa (elemento subjetivo - dolo) ser a mesma igualmente perversa.
Por fim, da leitura do artigo 14, parágrafo único, do Código Penal, depreende-se que embora a regra seja a adoção da Teoria Objetiva, existem situações excepcionais no ordenamento em que o legislador pune com a mesma pena a forma consumada e tentada, adotando a Teoria Subjetiva. São os chamados crimes de atentado ou empreendimento, como o previsto no artigo 352 do Código Penal.
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[1]Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes, Especialista em Direito Penal pela Damásio Educacional e Ibmec, Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Prominas, Especialista em Ciência Política pela UNIBF. Bacharela em Direito pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Professora de Direito Constitucional e Direito Penal da Autarquia Educacional do Vale do São Francisco – AEVSF, Advogada.
Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio, Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, advogado
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